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Foto do escritorTime YCL

Na esquina da fome, a cidade encontra a agroecologia

Como Belo Horizonte tem combatido a insegurança alimentar através de escolhas verdes.

Em um país em que mais da metade da população brasileira - para sermos mais exatas: 55,2% - está em situação de insegurança alimentar, sendo que destes, mais de 9% a vivência em seu mais alto grau, isto é, passam fome, falar da temática alimentar não é só importante, como necessário.

Por outra perspectiva, a agropecuária, junto à mudança de uso da terra é responsável pelo maior volume de emissões de gases de efeito estufa(GEE) no Brasil: 73% do emitido, conforme dados da SEEG Brasil. Assim, somando o fator humano ao impacto ambiental, o modelo de agricultura e pecuária predominantes no país é insustentável. Com isso, surge a necessidade de repensarmos seu formato, buscando soluções alternativas para a alimentação global.

Nesse sentido, a agricultura urbana se mostra como um dos caminhos possíveis para não só combater a insegurança alimentar, como desenhar modelos alimentares mais justos, igualitários e verdes.

Por isso, no decorrer deste artigo nos propusemos a analisar o cenário da agroecologia urbana em Belo Horizonte, Minas Gerais, cidade referência mundial em soberania alimentar. A capital mineira possui, inclusive, uma secretaria destinada ao tema que, ao lado da secretaria de meio ambiente, trabalha ativamente no fortalecimento dos territórios que se dedicam ao cultivo agroecológico.

Para tanto, visitamos três hortas urbanas e conversamos com os produtores para entender como têm sido, na prática, o uso da cidade no combate à insegurança alimentar e como esses espaços verdes podem apresentar Soluções Baseadas na Natureza (SbN) para problemas regionais.

Não basta comer, é necessário comer bem

Usaremos muito o termo “(in)segurança alimentar” ou a sigla SAN (segurança alimentar e nutricional) para dizer que não basta comer, é necessário comer bem. E o que é comer bem? Além de satisfatória ao paladar, a alimentação deve atender as necessidades biológicas do corpo humano, de forma suficiente e constante.

No Brasil, além do amplo repertório acadêmico e transdisciplinar existente, a legislação traz um belo referencial para compreendermos o tema, como mostra o art. 3º da Lei nº11.346/06:

Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Assim, vamos partir de um conceito de segurança alimentar que envolve três palavras-chave: qualidade, quantidade e regularidade. Além disso, considerando a promoção e respeito da diversidade e garantidor de um desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, as hortas urbanas podem contribuir com o desenvolvimento (humano, econômico, social e ambiental) sustentável, promovendo um cenário de SAN.

A gente não quer só comida: o direito à Cidade e a segurança alimentar

Robert Park, um dos pais da sociologia urbana, ensina que a cidade deve ser lida como mais que uma aglomeração de pessoas, mas como uma soma de fatores: espaço geográfico, maquinários, costumes, pessoas e governança. Assim, o urbano é uma construção social, na qual nos fazemos cidadãos, reproduzindo a dinâmica social dos modos de produção vigentes.

Nessa linha de raciocínio, surge o termo “direito à Cidade”, pensado por Henri Lefebvre, e o traz como o direito “à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados”. Contudo, enquanto expressão de um direito, ele exige que outros direitos sejam assegurados para a sua efetivação, como por exemplo o direito à habitação, à circulação, à cultura e, dentre tantos outros, o da alimentação.

Assim, usar a cidade para assegurar a qualidade alimentar daqueles que nela vivem é mais que uma possibilidade - um direito. E a história demonstra isso: as produções alimentares no contexto urbano não são exclusividade da nossa geração. Ao longo da história, em especial nos períodos de guerras, as cidades registraram produções que foram responsáveis por boa parte da alimentação da população de países como Alemanha, França e Reino Unido.

Nos países ditos subdesenvolvidos, quando olhados sob a ótica colonizadora, como os da América Latina, a manifestação do direito à cidade através da alimentação é velha conhecida: seja no quintal de nossas avós, que produziam hortaliças e ervas medicinais ou como política de Estado, como no caso de Cuba.

Nesse país, desde a década de 1990, após uma grave crise econômica, ocasionada pelos embargos econômicos dos quais foi vítima, seus nacionais começaram a plantar em suas varandas, pátios e terrenos desocupados. O governo mais que validar, incentivou essa prática e, como consequência, hoje aproximadamente metade dos vegetais produzidos no país partem dessas produções.

Belo Horizonte (BH) tem seguido essa mesma lógica, ao incentivar e patrocinar medidas que assegurem o cultivo de itens de hortifruti nos espaços disponíveis da cidade. Atualmente, o município conta com 42 unidades de produção coletivas (hortas urbanas autogeridas pelos moradores de determinado entorno), 44 sistemas agroecológicos institucionais e 62 sistemas agroecológicos escolares.

Segundo informações da própria prefeitura de BH, a atuação da governança municipal se dá através da Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (SUSAN). A SUSAN fomenta essas unidades através da doação de insumos e da capacitação técnica. Dentre vários objetivos, destaca-se a promoção da segurança alimentar, nutricional e o desenvolvimento local sustentável, especialmente por meio da transformação de áreas improdutivas em unidades de produção agroecológica.

Esses projetos municipais, embora ainda não sejam suficientes para erradicar a fome no município, apresentam escalabilidade e uma excelente alternativa de resistência e reforma do sistema alimentar vigente.

Mais que alimentar, esperançar!

No decorrer da escrita deste artigo tivemos a oportunidade de conhecer três hortas urbanas espalhadas por BH: o Escadão Agroecológico, localizado no bairro Esplanada, a Horta Jardim Produtivo, no Barreiro e a Horta Frutos da Terra, no São Gabriel.

Nelas, pudemos ver de perto como tem sido a implementação dessa política pública, não só no combate à fome, como na melhoria de vida da população envolvida e no desenvolvimento sustentável municipal.

Ao sair delas a nossa sensação foi de esperança, ao ver tomando forma um projeto com tanto potencial e escutar dos produtores o quanto aquele projeto tinha-lhes trazido benefícios financeiros e sociais, seja pela venda dos produtos na feira de agricultura urbana municipal, ou pela subsistência da própria família e retomada do convívio social, em especial pelas pessoas mais velhas e já aposentadas.

Além da experiência empírica relatada pelos produtores, os estudos demonstram o mesmo. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) apresenta doze benefícios para o cultivo de hortas urbanas, os quais são:

  1. Redução das ilhas de calor, pois a inércia térmica da água presente nas plantas e da própria terra cultivada faz com que as hortas absorvam o calor e conserve a temperatura;

  2. Melhora da qualidade do ar, pela liberação de oxigênio no processo de fotossíntese;

  3. Absorção do ruído, pois diferentemente do cimento, as plantas conseguem absorver os sons;

  4. Redução do risco de inundações pela retenção da água da chuva com a não impermeabilização do solo;

  5. Redução da contaminação em todo o processo, pois as hortas urbanas utilizam princípios da agroecologia e reduzem a distância entre o produtor e o consumidor;

  6. Destinação adequada dos resíduos orgânicos, que geralmente são aproveitados, tornando-se composto para a manutenção da própria horta;

  7. Economia familiar: se alimentar do próprio plantio é uma alternativa que suaviza os gastos domésticos, além de poder se converter em uma atividade econômica para famílias que cultivam e vendem sua produção;

  8. Melhora na qualidade alimentar, oferecendo diversidade nutricional e uma alimentação orgânica;

  9. Durabilidade, afinal, as plantas vivas duram mais;

  10. Promoção de uma maior biodiversidade, através da interação entre a fauna e flora local, reduzindo a chance de pragas externas;

  11. Melhora no convívio entre produtores, promovendo um local de encontro comunitário;

  12. Integração com a natureza, afinal, ver uma planta crescer e cuidá-la, aumenta o contato humano com o ritmo natural do universo e do próprio corpo.

Todos esses benefícios trazidos pelo BID se traduziram nas nossas conversas com os usuários e produtores das hortas visitadas. Na Horta Jardim Produtivo, a dona Raquel, a cabeça do projeto, uma senhora de aproximadamente setenta anos, relatou o quanto a vida dela havia mudado desde o início da horta, o quanto ela tem suportado os vizinhos menos favorecidos durante a pandemia.

Dona Raquel na reunião da associação de produtores, apresentando a horta jardim produtivo.

Mostrou, com carinho, seu pé de amora carregado, as joaninhas na couve e a beleza que estava sua composteira, fruto do seu trabalho e dos outros dez produtores, dentre eles filha e neta, que trabalham naquele pequeno espaço de terra, mas que transforma a vida de todos os que ali habitam.

Trabalho este que agora busca reconhecimento: Belo Horizonte agora busca certificar a qualidade dos alimentos produzidos no contexto urbano, nas unidades produtivas coletivas.

Por meio de um sistema participativo de garantia, com apoio da associação de produtores e da Prefeitura, as hortas comunitárias buscam conquistar o selo de orgânico para a produção agroecológica.

A consequência desse selo é não só a valorização do produtor, mas facilitação de investimentos e aumento do valor do produto nas feiras de agroecológicos que acontecem nas regiões mais ricas da cidade.

Mas o arremate do sucesso da agroecologia urbana não está na perspectiva alimentar, mas em enxergá-la como uma solução baseada na natureza, capaz de assegurar outras perspectivas do direito à cidade, em especial outras mais relacionadas ao urbanismo e ao bem viver.

A agroecologia urbana e as Soluções Baseadas na Natureza, o caso do Escadão Agroecológico

Com a transição da maior parte da população para a cidade, muitas pessoas perderam sua conexão com a natureza; outras, entretanto, nunca a possuíram. Nesse contexto, a “biofilia” ou “amor às coisas vivas” é "impactada pelas experiências pessoais, sociais e culturais nas quais o sujeito está inserido e vive desde a primeira infância”.

Para recuperar esse sentimento e despertá-lo em quem nunca o sentiu, é preciso reforçar o contato com a natureza a fim de criar uma sensação de pertencimento e estimular o respeito ao meio ambiente. Isso pode ser feito através de adaptações e intervenções em espaços urbanos, ao aplicar algumas SbN.

Segundo a definição da União Internacional para a Conservação da Natureza, as SbN são ações que visam proteger, restaurar e manejar sustentavelmente ecossistemas modificados e naturais, endereçando de forma eficaz e adaptativa os desafios da sociedade e promovendo benefícios à biodiversidade e ao bem-estar humano. Essa estratégia, além de propiciar vivências da população na natureza, pode auxiliar no escoamento das águas de chuva, reduzir a insegurança alimentar, proporcionar o conforto térmico, etc.

Poste com intervenção artística no Escadão Agroecológico.

Uma iniciativa como a do Escadão Agroecológico, citado anteriormente, é um exemplo de ação que busca “ocupar e revitalizar vazios urbanos subutilizados tendo a agroecologia como princípio fundamental, e permite aliar a produção de base agroecológica, segurança alimentar e nutricional com inclusão social”. O espaço conta com uma grande variedade de espécies, inclusive as que são capazes de absorver uma considerável quantidade de água e evitar o escoamento, como a taioba. É possível encontrar também árvores frutíferas e saborear uma amora ou pitanga enquanto se sobe as escadas no caminho para casa ou trabalho. Para complementar as refeições principais, é só dar uma passadinha rápida no Escadão e colher batata-doce, coentrão e feijão-guandu. Caso tenha problemas respiratórios, o assa-peixe é uma PANC muito eficaz no tratamento. A artemísia também está presente e pode tratar infecções urinárias e até mesmo a ansiedade.

Por meio de técnicas simples e acessíveis é possível recuperar o solo e torná-lo adequado para se obter uma grande variedade de frutas e hortaliças. Nos canteiros do Escadão é utilizado o bagaço de cana doado de uma pastelaria. O pseudocaule da bananeira é utilizado para manter a umidade do solo, evitar a erosão e retornar os nutrientes. A palha serve como cobertura seca também para ajudar a manter a umidade e evitar a lixiviação.

Além disso, trabalham com o biofertilizante Microorganismos Eficientes (ME) e não utilizam adubos químicos. Isso ressalta a importância de ocupar espaços vazios e proporcionar a união das famílias do bairro e também de outros cidadãos, que em tempos de carnaval se reúnem para prestigiar o Baque Humaitá.

As hortas urbanas proporcionam inúmeras vantagens, não só para contornar as situações de impactos ambientais nas cidades, mas também para beneficiar a população local. É fundamental inseri-las no planejamento urbano, como no Código de Obras e no Plano Diretor. A criação de cidades verdes e resilientes é uma estratégia de mitigação das mudanças climáticas muito relevante para a manutenção da nossa qualidade de vida e sobrevivência, capaz de auxiliar no enfrentamento da crise climática.

Nada é tão bom que não possa melhorar!

A experiência prática nos mostrou o quão certa essa experiência tem dado. Com a experiência belorizontina percebemos que vários objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) foram alcançados: o combate à fome, vida saudável, redução das desigualdades, cidades e comunidades sustentáveis, produção e consumo sustentáveis e outros que podem ser percebidos a depender da ótica com que se vê o tema.

Com isso, acreditamos que o primeiro passo foi dado, agora resta a nós, enquanto comunidade, atuarmos conjuntamente ao poder público para a ampliação desse modelo alimentar, utilizando princípios da agroecologia, alcançando regiões da cidade que são subjugadas e “periferizadas”, aumentando o número de feiras, (preferencialmente em locais próximos para evitar a emissão de GEE no transporte), dentre outras medidas que podem ser pensadas de modo a consolidar a agroecologia/hortas urbanas não só para a construção de um novo sistema alimentar, em contraposição ao agronegócio, mas uma solução baseada na natureza para problemas de infraestrutura urbana e acesso ao direito à cidade.

Frase de Ana Primavesi pintada no Escadão Agroecológico.

Pois afinal, como ensina Ana Primavesi, “O homem é o que o solo faz dele”, que nos façamos justos, inclusivos e capazes de encontrarmos um cenário de justiça social, através do desenvolvimento sustável e das soluções que a natureza oferta.


Sobre as autoras:

Ana Carla Sena de Assis e Rocha - LinkedIn

Advogada, pós-graduada em Direito Público, com ambas as formações pela PUC Minas. Geminiana, com ascendente em leão, que acredita na Utopia e que só é possível construir um mundo melhor se nele houver justiça. Shaper do Global Shapers, rede de jovens do Fórum Econômico Mundial e Líder de Mobilização Comunitária do GoodTruck, ONG que promove sistemas alimentares sustentáveis. Atualmente é assessora de comunicação política na escola de governança Novas Ideias.


Marina Azevedo Superbi - LinkedIn

Engenheira Florestal formada pela Universidade Federal de Viçosa, pós graduada em Gestão Ambiental e Sustentabilidade e estudante de pós graduação em Direito Ambiental e Urbanístico. Vegetariana e muito disposta a realizar grandes esforços para tornar o mundo um lugar melhor. Atualmente é voluntária no setor administrativo da Brigada de Incêndios Florestais de João Monlevade.





Ana Carla Sena e Marina Azevedo Superbi participaram da 6ª edição do Curso YCL no segundo semestre de 2021 como bolsistas. As referências e opiniões expressas no artigo são de responsabilidade das autoras.

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