Periferias, favelas, áreas às margens de um conglomerado urbano. Há diversas nomeações para estes locais que abrigam milhões de pessoas nas grandes metrópoles brasileiras, assim como são diversos os processos pelos quais se dão, e se deram, a formação deles de norte a sul no Brasil, que vão desde a expulsão de pessoas pobres de áreas centrais, até a falta de opções para moradia. Mas, todos esses territórios possuem uma coisa em comum, que é sempre lembrada no dia-a-dia: a desigualdade.
Desigualdade social, vulnerabilidade e criminalidade são alguns dos problemas que podemos apontar nas periferias, os quais há muito são registrados e denunciados de diversas formas em diversos sentidos, como fizeram os Racionais Mc’s no álbum Sobrevivendo no inferno nos anos 90, que trouxe um recorte racial e crítico para o antigo Triângulo da Morte de São Paulo. No entanto, quando olhamos esses problemas sob as lentes das mudanças climáticas, é perceptível que todo o aspecto negativo dela será pior, mais agressivo nas favelas.
Em termos práticos, por causa das mudanças climáticas, inundações e alagamentos causados por chuvas fortes serão mais frequentes, então, regiões carentes de políticas públicas que visem a instalação de sistemas de escoamento de esgoto eficientes serão as mais afetadas (como já o são em periferias). Soma-se a esse contexto a existência de córregos correndo a céu aberto ao lado de diversas moradias familiares, e logo temos problemas de saúde pública, como doenças infecciosas veiculadas pela água e por animais infectados. Ainda sob o viés da saúde, podemos citar a arborização urbana, que seria uma grande aliada para amenizar o aumento da temperatura nos próximos anos e evitar casos de estresse térmico, contudo, nas favelas o pouco espaço que se tem para construção é aproveitado ao máximo, e nada sobra para áreas verdes.
Estes são apenas dois exemplos de tantos outros que existem nas periferias, e que a cada ano pioram, enquanto os números de residentes nas favelas só aumentam. Em todo esse contexto, as maiores vítimas da crise climática são os que menos contribuem com ela: pessoas pobres, moradoras de áreas precárias e em sua maioria negras. Toda essa galera mais vulnerável, bem como quem se importa com os efeitos da crise climática, não sabe bem o que fazer, como agir, como se posicionar e espera que outras pessoas façam por eles. Mas quem? Políticos? Militantes de movimentos sociais? Algum famoso? Algum amigo? A própria Anitta?
Inevitavelmente, a resposta a todas essas perguntas pode ser sim, por bem ou por mal. Entretanto, o ponto aqui não é quantitativo, mas sim qualitativo. Sempre houve atores sociais para pensar e planejar o urbano, não à toa cidades como Recife e São Paulo são lembradas em toda a sua beleza, história, pontos turísticos e destinos, seja no litoral ou no interior do país. No entanto, onde estavam esses mesmos atores para pensar a periferia desde a sua gênese em décadas passadas? Há alguém ainda nos dias de hoje preocupado com as favelas nos espaços de tomada de decisão? Há algum representante periférico nestes locais?
Eu também não sei ao certo a resposta, porém enquanto jovem periférico tendo a dizer que não, provavelmente não há alguém pensando nas periferias em espaços decisivos para a sociedade. E acredito que esse seja um dos maiores problemas quando se trata de bem-estar social: a falta de representatividade. Pode parecer tedioso falar que as coisas continuam como sempre foram porque somente homens brancos, cisgêneros, héteros e de classe média-alta ocupam a maior parte dos cargos de decisão, mas é literalmente sobre isso! Não se vê vontade nem articulação social ou política eficiente para resolver as questões-problemas da população periférica, majoritariamente preta e pobre.
A não ser para a manutenção do sistema de transporte público, que, no viés tecnocrata, tem o único objetivo de fazer os trabalhadores atravessarem a cidade todos os dias para manter a economia funcionando. Aliás, foi esse mesmo perfil de homem que criou e mantém a hegemonia do sistema sociopolítico atual, o qual trata a natureza como mero objeto a ser explorado e que desencadeou a crise climática na qual estamos hoje (contudo, vamos manter isso em segredo para eles não se sentirem atacados, okay?).
Além do mais, muitas pessoas se valem do argumento de que não há ninguém “qualificado o suficiente” vindo das favelas para ocupar esses cargos de decisão. Vejamos, um dos grandes problemas da periferia é a educação pública, então muitos periféricos possuem baixa escolaridade porque não tiveram oportunidade de estudar, e aqueles que estudam ou estudaram não estão bem preparados para as exigências do mercado de trabalho, nem tiveram o aprendizado necessário para entrar em uma universidade de ponta. Portanto, se a educação é ruim, e não há planejamento para que ela melhore, não haverá profissionais para representar essa população. E esse ciclo é mantido há muito tempo. Entretanto, ele não configura uma ameaça intransponível.
Carolina Maria de Jesus, lá na década de 60, sendo moradora da favela de Canindé, zona norte de São Paulo, e tendo gosto pela leitura e escrita, tornou-se uma escritora renomada com o ainda hoje best-seller Quarto de despejo: diário de uma favelada. Neste livro, Maria retrata a sua realidade como catadora de papel utilizando uma linguagem não condizente com a norma-culta, devido à sua pouca instrução. Ela faz duras críticas às duas São Paulos existentes: uma visitada por turistas, e a outra escondida, representada pelas favelas. A escritora vai além, e trata sobre as visões e usos dos espaços pelos mais pobres e como isso influencia na cidade mais afamada cidade da América Latina.
Carolina é uma de vários exemplos de como a educação potencializa resultados, pessoas e ações. Enquanto jovem periférico, eu não quero me tornar um político que vai à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e cria caminhos para resolver problemas das favelas. Eu prefiro investimento em educação para que as decisões sejam tomadas aqui. Sonho que todas as pessoas possam entender “o que querem da vida” e que de fato consigam estudar para alcançar as suas metas; quero que todos se entendam como cidadãos e passem a cobrar políticos por melhorias em todos os serviços públicos na periferia.
É urgente que todos à minha volta sejam incluídos no gigante contexto das mudanças climáticas como participantes ativos, não meros sofredores das consequências. Que estejamos em rodas de conversa e de decisão para escrever e colocar em prática ações mitigadoras dos efeitos das mudanças climáticas, como nas inundações; que aqui seja discutida a implementação de sistemas de energia solar comunitários; e que haja uma ampla articulação entre diversos grupos sociais, como LGBTQIAP+, PCDs, indígenas e imigrantes, para que as decisões beneficiem e se preocupem com todos.
Almejo que todo o cenário de exclusão visto nas favelas, em seus mais diversos aspectos, seja transformado em inclusão, oportunidade e participação. Espero que pessoas como Tiago Torres e Amanda Costa, ambos paulistanos periféricos que quebraram suas bolhas sociais e hoje são ativos em áreas ainda muito elitizadas, como a Universidade de São Paulo (USP) e o mercado de trabalho das mudanças climáticas, respectivamente, não sejam apenas exceção, mas sim a regra na periferia.
E que toda essa discussão perpasse o básico, como o acesso à moradia e a educação de qualidade, chegando ao nível dos debates que ocorrem nas COPs para que a população periférica negocie sobre o direito à cidade em todos os seus aspectos. Em suma, sonho um dia que todos realmente tenham um lugar ao sol. Não sei bem como tudo isso será possível ou quando ocorrerá, contudo, se ainda não ficou claro, a representatividade sim importa para alcançarmos essa utopia.
Sobre o autor: Eduardo Braga
Jovem paulistano e periférico nascido da ponte pra cá na zona sul de São Paulo. Tenho 19 anos, sou estudante de Gestão Ambiental na EACH-USP e apaixonado pelo meio-ambiente desde que me entendo por gente. Tenho como principais interesses os temas ligados à juventude, mudanças climáticas, educação, cidades e igualdade. Atualmente sou voluntário em dois cursinhos populares e em duas entidades universitárias. Agora também Fellow YCL e logo, logo estarei dentro do mercado de trabalho.
Eduardo Braga participou da 6ª edição do Curso YCL no segundo semestre de 2021 como bolsista. As referências e opiniões expressas no artigo são de responsabilidade do autor.
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